sexta-feira, 27 de dezembro de 2013

Merece um filme - Automan


Das muitas criaturas bizarras da fauna televisiva dos anos oitenta, uma despertou especial atenção do público. Era claramente inspirado no filme Tron, mas com linguagem e contexto apropriados a um seriado cheesecake. O roteiro não era dos melhores, mas era bom, os diálogos até conseguiam ser bastante divertidos, especialmente pela influência do imenso amor próprio do protagonista.

Automan estreou em quinze de Dezembro de 1983, pela ABC, e tinha tudo para ser um sucesso, mas durou pouco, até dois de Abril de 1984. Assim como Tron, parece que o público não absorveu bem o conceito da série.

Era basicamente o seguinte, um policial científico fazia estudos de algoritmos sofisticados em seu computador (UAU! Ele tinha um computador!) nas horas vagas, e às vezes até durante o batente. Com o tempo esses algoritmos se tornaram autônomos, sem que ele percebesse. Em paralelo, o policial nerd baixinho e tímido instalou naquele computador, como se existisse memória suficiente para isso na época, dados de como ele gostaria de ser, ele montou um galã de cinema, alto, forte, másculo e helenisticamente desenhado. A idéia era usar a imagem como holograma de teste, mas esse era o plano dele, o oficial de polícia Walter Nebicher, alguém tinha outros, planos para aquela imagem.

O algoritmo safado tomou posse da descrição, inclusive da personalidade programada e decidiu sair do computador... É, foi aqui que forçaram a barra, mas sem isso a série não teria saído do papel; se bem que talvez não tivesse saído do ar também. Quando estava com todos os comandos devidamente organizados e fechados, o algoritmo só esperou que Walter voltasse a trabalhar, ligasse aquele computador e rodasse o programa. O que aconteceu? Ele tomou conta da máquina, se apoderou da rede eléctrica e sugou uma quantidade imensa de energia, como se um computador suportasse tanta carga. Foi assim que o holograma Automan se materializou. Do pescoço para baixo era uma roupa de malha onde os efeitos especiais colocavam um céu infinito estrelado, do pescoço para cima era um galã louro mel, de voz grave, olhar de aço e um amor próprio tipicamente leonino.

Com ele veio um ponto luminoso chamado Cursor, responsável por materializar a energia de acordo com suas necessidades, quase sempre na forma de meios de transporte. Aliás, o carro que usavam na série era nada menos do que o legendário Lamborghini Countach, preto com traços azul neon. Algo interessante nesse carro, além de custar uma fortuna na vida real, era a quase total ausência de inércia, conseguindo fazer curvas em ângulo reto a trezentos quilômetros por hora!

Seu ponto fraco, como qualquer máquina que tenha reservas próprias de energia, era a escassez desta. De tempos em tempos ele precisava desaparecer para se recarregar na rede pública, ou seja, morreria de fome no Brasil. Mas como algoritmo autônomo com um ego maior do que a usina de Itaipu, ele conseguia sobreviver e agir nas linhas de transmissão, até o amigo precisar dele e o chamar.

Se nos Estados Unidos ele foi uma decepção, no Brasil os doze episódios foram reprisados à exaustão, e venderam bastante brinquedos. Há um décimo terceiro episódio, que só foi exibido Sci-Fi Channel, em uma época que não havia tevê a cabo no Brasil.

Bem, se Tron foi reditado com uma bela continuação, por que Automan não poderia ter seu longa? Afinal, computadores que geram e rodam hologramas saíram há anos da ficção científica e fazem parte do cotidiano do cidadão comum, já estamos prontos para aquela figura grega de corpo estrelado e ego gigantesco; só ele já ocuparia metade do disco rígido, claro, mas valeria à pena. E quem sabe, como vilã, uma bela Autowoman. Já pensaram na farra que eles fariam hoje, em um mundo totalmente dependente de uma rede de computadores?

Em 2012 o actor Chuck Wagner, que fez o Automan, apresentou um documentário sobre a série, com depoimentos do elenco original:


segunda-feira, 23 de dezembro de 2013

O último natal dos Tanner

Ele desce com dificuldades, com a mão na cabeça e jurando que ainda vai colocar um elevador na casa.
Talvez fosse mais fácil comprar uma casa pequena, de um só pavimento, mas sempre se esquece disso. Além do quê, sempre moraram lá, criaram os dois filhos naquela casa; os filhos e um alienígena. A encontra na varanda da frente, devidamente agasalhada, a admirar a velha Caprice wagon 1995, o último carro que compraram...

- Kate, que dia é hoje?
- É quarta-feira, Willie.
- Não tínhamos um compromisso para hoje?
- Eu creio que não, por que?
- Eu tenho certeza de que havia algo para fazer hoje, algo muito importante!

Ela pensa por alguns minutos, mas desiste, não se lembra de absolutamente nada marcado para o dia de hoje. Ele se cala e se senta também, no banco de balanço, suspenso por correntes. Fazia anos que não se sentavam juntos naquele banco, desde que Lynn voltou com o marido e os dois filhos, de férias, mas foi só uma semana, logo retornaram para Viena e nunca mais puseram os pés nos Estados Unidos.

Brian simplesmente desapareceu. Foi tentar a sorte no Brasil e nunca mais se teve notícias dele, desde que mandou um cartão de natal da Cidade do México. A casa ficou grande, muito grande. Pararam de viajar, de ir ao supermercado, até os passeios pelo bairro se tornaram raros, desde que Trevor e Raquel morreram nos atentados de onze de Setembro.

Willie insiste novamente...

- Vamos ver... O que estávamos fazendo no ano passado, nesta época?
- Eu estava no hospítal.
- Como?? Eu não me lembro disso!
- Porque você teve um AVC, querido. Passou quase um mês inteiro internado. Eu estava cuidando de você.

Ele puxa pela memória e se lembra de algo, de a visão se turvar e de perder o controle dos músculos. Depois disso, só se lembra de nunca mais ter andado de bicicleta. Se lembra também que nunca mais comeu chocolate, perdeu parte do paladar no episódio...

- Kate, lembra do Alf?
- Como não lembrar, Willie?
- Por que ele foi embora?
- Não se lembra?
- Não... Estou com saudades dele.
- A polícia do planeta dele veio buscá-lo.
- Por que? O que ele fez?
- Fugiu do casamento!
- Ele tinha uma noiva??? E por que ela não podia ter vindo morar com a gente?
- Você está louco??? Como iríamos ocultar a existência de dois alienígenas comedores de gatos? Ainda mais depois de criarem, eles tinham prometido doze filhos para suas famílias!

Ele fica cabisbaixo. Pouco resta do pouco cabelo que tinha, quando os filhos e o alienígena enchiam a casa. Casa grande, onde esperavam receber a visita dos netos, na velhice. A onda de revival oitentista só fez aumentar a amargura do velho Tanner. Ela também não se sente melhor, envelheceu muito rapidamente desde que Alf foi capturado, e os filhos começaram a perder o interesse na vida em família. Se faz de forte porque tem um marido doente que depende de si, mas seria capaz de se mudar para uma fazenda, se isso trouxesse os filhos e o alien de volta, mesmo com sua prole gigantesca. Se lembra quando olhava para o espelho e se achava linda, quando os amigos da filha chegavam a pensar que fosse sua irmã mais velha, hoje se acha horrorosa, não importa o quanto os outros digam o contrário.

Voltam para dentro, que está escurecendo e a neve voltou a cair. Tomam uma sopa rala, de propósito meramente nutritivo, então vão dormir. Ela o abraça, contendo o choro, mas não as lágrimas. Aos poucos a respiração dele enfraquece até que se extingue. Então ela chora com vontade, abraçada ao corpo do marido. Poucas horas depois ela o segue. Na manhã de natal Lynn recebe, em Viena, o e-mail do seguro comunicando o falecimento de seus pais. Brian jamais foi encontrado.

segunda-feira, 2 de dezembro de 2013

Clarice e Luiza


Faz tempo que desisti de quase tudo o que passa na Globo, por isso fui pego por uma grata surpresa. Trata-se de um quadro retrô, em que uma mulher misteriosa narra e encena um programa de rádio, para as mulheres de meados dos anos sessenta.

Para as feministas mais extremistas, de quem todas as feministas que se prezem querem distância, é um acinte. Tudo é ambientado na época; roupas, cenários simplificados, assuntos tratados e até o vocabulário. Onde já se viu, falar às mães e pretendentes à maternidade? Pois Luiza fala em cena, que também conta com Maria Fernanda Cândido, Alessandra Maestrini e a novata Cintia Dicker.

É tudo muito leve, fluído e sem afetações. Os conselhos são dirigidos àquelas que vestem a carapuça, sem atacar as que não se enquadram. Exibindo as marcas do tempo em seu rosto impecável, sem qualquer uso de corretivos digitais ou qualquer outra deselegância "moderna", a diva pantaneira empresta sua classe e elegância a um texto que é, por si, repleto de charme e feminilidade.

A própria abertura do quadro é um espetáculo, com fundo musical e cenário de época, inclusive uma antiga câmera de televisão e um microphone bi-trapezoidal cromado, que recebem uma escultural dama em um tailleur vermelho.

Os tópicos, os leitores podem deduzir. Moda, comportamento, filhos, família, trabalho, saúde, beleza e miudezas do dia a dia. Algo que parece muito banal aos viciados em engajamento e lutas, que na verdade estão é fugindo de suas próprias vidas, mas que fazem toda a diferença no núcleo familiar.

Muitos hão de se discordar do tipo de abordagem, pois remete a uma época em que uma mulher não conseguia trabalhar fora sem a permissão do marido. Sim, leitores, nós já tivemos essa mazela, até 1962. Entretanto, deve-se ouvir e ver de coração desarmado os conselhos e argumentos, que sem nossos julgamentos conseguem se encaixar perfeitamente nos dramas cotidianos.

Isso, claro, sem contar a beleza plástica do quadro, que é tão deslumbrante quanto suas apresentadoras. Elas, aliás, fogem à moda deprimente da emissora, que estragou o excelente Auto Esporte e o transformou em "Celebridades que gostam de carros". Aparecem nas cenas como intérpretes mudas, como se a voz doce e maternal de Maria Fernanda fosse de cada uma. Ou seja, elas se colocam como uma peça, não como "Celebridade fazendo bico no programa".

Quando já ia me perguntando de onde a Globo tinha tirado um escritor tão talentoso, com uma linguagem tão rica e compacta ao mesmo tempo, eis que o estilo e uma rápida pesquisa esclarecem minha dúvida. Eles não encontraram, não há nenhum escritor de talento raro e adorável na nova safra da televisão. A autora é Clarice Lispector. O quadro é baseado em conselhos femininos que ela publicava em jornais, nos anos 1950 e 1960, sob o pseudônimo de Helen Palmer, a narradora misteriosa.

Sinceramente, o quadro Correio Feminino, com o cabedal de Clarice e a maravilhosa Luiza e sua trupe de ladies, poderia substituir facilmente um programa que já deu o que tinha que dar há muito tempo.