sábado, 20 de dezembro de 2008

Ensaio

O ambiente é austero, mas não oprime. É uma transição do art nouveau para o art déco, típico do fim dos 1920 e início dos 1930. As cadeiras de madeira encurvada, com assentos rebatíveis são indefectíveis. Não é um ambiente muito grande, mas há espaço de sobra para quase tudo o que pessoas comuns queiram fazer. Só não se pode fazer uma mostra de carros antigos porque as escadas são estreitas e suas entradas têm vigas baixas. Mas quem faria uma exposição de carros antigos na época? Os carros antigos de então eram as raridades do século XIX, a maioria das quais já transformadas em lingotes nas siderúrgicas. E quem pensaria em levá-los ao auditório do colégio? Mesmo hoje isso é uma panacéia, as escadas dão bem para pessoas; e chega.

As paredes são de um bege terroso com uma fina faixa preta separando o tom de um verde musgo, as cortinas vermelhas escarlate liberam janelas muito amplas, com vidros basculantes, que vão da faixa preta até quase o forro.

O piso é de azulejos originais da época. São azuis, com um tipo de sol laranja com raios em dois tons em um vértice, uma "rampa" verde escuro no adjacente, que sobe até dois losangos invertidos nas mesmas cores do sol. Quatro peças juntas formam uma bela figura, quase que hélices de avião. Não fazem mais cousas assim hoje em dia. As tintas que hoje se usam, são frágeis demais para dispensarem a vitrificação, o azulejo ficaria branco com um mês de uso, mas aqueles estão lá há oito décadas. Imaginam o que é agüentar o trânsito contínuo de alunos por oito décadas? Cobravam caro, mas o que vendiam não causava os transtornos de precisar trocar todos os anos.

Ao fundo, acima da entrada, um balcão cobre toda a largura do salão, com o parapeito dividido em cinco elementos de dois retângulos segmentados, muito simples e elegante, como era voga na época. O palco pede algumas reformas, mas ainda hoje funciona bem, as cortinas deslizam como se fossem novas, embora já tenham sido trocadas um monte de vezes.

Olhando para o forro, vê os dois tons de amarelo (pastel e terroso) em dez planos inclinados, nos quais o forro paulista bitonal forma numerosos "V" em direção ao palco. Também pede intervenções, mas também funciona e encanta de magnífico modo aos olhos.

À direita, pouco antes de uma das entradas para o palco, está o velho piano de armário. Já um pouco desbotado, como um senhor grisalho, mas nem pensa em se aposentar, prefere ser consumido pelas chamas enquanto dispensa seus últimos acordes.

Se pergunta como tudo aquilo sobreviveu ao culto do egoísmo e à frieza dos descartáveis que invadiu os anos 1980, e se agravou muito na década seguinte. Tudo tão lindo!

Conhece aquele tipo de ambiente. Embora os papas tenham extirpado da bíblia, por pressão política e ameaças declaradas de gente temerosa por seus próprios actos, padres já lhe confidenciaram que a misericórdia divina não nos deixa à mercê de um prazo tão curto que é a vida mundana. Já foi adulta na época em que aquele estilo arquitetônico dominava as cidades. Na verdade, aquele ambiente que tanto afugenta a maioria dos jovens, lhe é doce em lembranças e sensações. O coração bate forte demais, o diafragma lhe perturba e as pregas vocais estão inquietas, não vai esperar pelos outros, começará a ensaiar agora mesmo...

- Ave Maria, Vergin del ciel, Sovrana di Grazia e Madre Piadeh, accogli ognor la fervente preghiera, non negar a questo straziato mio cuor tregua al suo dolor. Sperduta l'alma mia ricorre a Tee pien di speme si prostra ai Tuoi pièti invoca e attende che Tu le dia la pace che solo Tu puoi donar. Ave Maria.

1 comentários:

Adriane Schroeder disse...

Poético, como sempre, Nanael.