sábado, 22 de novembro de 2008

No mínimo setenta


Ninguém deveria morrer com menos de setenta anos. Pessoas com sessenta ainda têm algum viço, muitas têm energia de sobra e uma década é o mínimo para passar aos mais jovens sua experiência de vida. Quando se passa dos setenta, provavelmente os netos já têm uma certa idade e sentirão menos a separação. Além do quê, gente que trabalhou pesado a vida toda, passa a ter o trabalho intelectual da sabedoria para se manter activo e descansar o corpo.

Mas há pessoas que deveriam viver, no mínimo, até os oitenta e cinco. É gente que faz a diferença, que impõe respeito aonde quer que vá. São as pessoas que se dedicam a algo que não seja a satisfação pessoal ou os negócios da família. Esse tipo de gente não tem só experiência de vida, tem uma bagagem moral que uma década não basta nem para começar a ensinar. Ainda que o corpo não responda mais a contento, a mente continua lúcida e afiada, pronta para despejar seu repertório a quem quer que se interesse.

Há um grupo, porém, que não deveria ir embora antes dos cem anos. São verdadeiros missionários, gente que abre mão de sua própria vida pessoal para se entregar a uma causa. São pessoas que dão às outras esperanças para continuar a labuta, não esmorecer enquanto ainda têm forças e acreditar que ser justo vale à pena. Esse grupo chega às raias da verdadeira bondade, ainda que com uma vara de marmelo nas mãos, tem a sabedoria de quem sabe que não vivenciou mais porque não pôde, que quando pôde fez o que quis. Se deixou de ir às baladas, foi para se dedicar a algo ou alguém que julgou merecer. Entre seus prazeres e o conforto do próximo, escolheu este.

Um quarto grupo faz falta, não importa o quanto demore a desencarnar. Podem eles chegar aos cento e vinte, que mesmo assim o cortejo fúnebre estará repleto de inconformados. São pessoas que tanto se deram àquilo em que creram, e fizeram com tamanho amor, que passaram a ser veneradas. Estas despejam em uma hora de conversa, mais conteúdo do que a maioria acumula durante a vida inteira. Quando podem e querem, vão às festas, passeiam pelas praças, comem pizza com coca cola. Mas não pensam duas vezes antes de deixar o prato à mesa, se lhe chama a urgência. Hora, distância, localidade, custo, dificuldade, nada disso tem tamanho para essas pessoas. Se vivessem na região do Mediterrâneo antigo, entrariam para a história como mitos, semi-deuses ou deuses cujas vidas antes do Olimpo seriam contadas por escritores e philósophos de todo o mundo. Algo como "Cristina, Deusa da Fraternidade". Gente que, mesmo falando de amenidades, nunca é fútil, nunca se arrasta pela maledicência. Se tem vontade de esganar alguém, ignora a vontade até que passe, mas não se furta ao dever de corrigir a conduta de quem lhe é a competência. São pessoas das quais tudo o que se falar é pouco.

Mas há um grupo numeroso cuja passagem deveria ser regulamentada por lei. Filhos jamais deveriam morrer antes dos pais. Só isto já tornaria o mundo mil vezes melhor do que é.

3 comentários:

Adriane Schroeder disse...

Lindo, sensível e reflexivo. Amei, Nanael!

Luna disse...

Eu penso da mesma forma!

Nanael Soubaim disse...

Alguns morrem ainda jovens, só equecem de cair.